27 outubro, 2009

Em pressão... (Parte 1)

Sinto eu uma necessidade de despejar tudo num papel, vomitar a tragédia grega a qual fui espectadora, despejar o que chamo de morte vivida. Pode lhes parecer ser apenas a fértil imaginação dramática de uma senhorinha aparentemente tão amável que passou a sua vida como público da morte alheia, porém tenham a minha garantia que aqui só registrarei as observações fervescentes dos meus olhos cansados, o que o vento me sussurrou ainda há pouco e as minhas lembranças um pouco defasadas pelo aviso próximo de não estar mais entre esses tijolos e argamassas. Começarei logo com a minha preferida, alguém um dia a chamou de galega e eu gostei. Apresento-lhes, a “galega”.
Seus longos cabelos loiros tentavam esconder o lindo rosto de traços suaves e delicados, modificado artificialmente por desejo e vontade própria. Olhos perdidos, no meio da cidade que fingia dormir, fixos nos carros que davam adeus naquela esquina. Sua única e fiel companheira, uma caixa de marlboro cheia de bitucas de cigarro, pequenas doses de ilusões espalhadas pela fumaça que saía dentre seus lábios vermelhos.
Saltos finos, escolhidos especialmente para cada noite, porém desgastados por movimentos incessantes e contínuos. Movimentos que só se faziam saciados ao entrar numa Mercedes cor de fogo. Ao passar dos meses notava que isto havia virado uma constante rotineira e semanal, pontualmente no mesmo dia e horário.
Uma barriga saliente me prendia a atenção. Criei uma hipótese plausivelmente aceitável, seria apenas displicência em relação a sua alimentação, teria comido mais do que deveria e voltaria logo ao seu corpo curvilíneo que tanto despertava segundas intenções, normalmente masculinas. Hábitos novos surgiram, vômitos e fraquezas. Sua barriga adquiriu um formato diferenciado, apesar de não ter muita experiência nestes assuntos, juntei as peças do óbvio quebra-cabeça, não era apenas gordura localizada, mas estaria esperando um filho. Ela seria capaz de fazer uma boa atuação no papel de mãe? Ou trataria o ser inocente que carregava dentro de si nos mesmos moldes que tratava a própria vida?
Suas vestes vulgares e decotadas a mostrar tanta pele, diminuíam a olhos vistos. A cada noite que passava sua presença naquela esquina se fixava por um período maior de tempo.
Em 19 de abril escutei minha sentença de morte numa sala de hospital. Uma voz gasguita me informara minha data máxima de validade, após alguns meses seria um produto de supermercado estragado, sem serventia prática, sem importância, descartado, abominável, vencido. Reflexões clichês na volta de casa, sobre a hora da morte, me faziam pensar na vida e no que ela poderia ter sido. Na barreira inexistente que separava a madrugada do dia seguinte, Maria das Lurdes, estava lá no mesmo local de sempre, com malas nas mãos, sacolas, tudo que fosse capaz de guardar os seus poucos pertences. Seria naquela hora que iria trocar as primeiras palavras com alguém que já conhecia tão bem. Rosto desesperado e sem a possibilidade de recusar o meu convite, aceitou deveras agradecida e surpresa, passar então a noite mais longa na minha casa, a noite de três meses e tantas horas.

(...)

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