31 outubro, 2009

Em pressão... (Parte 3)

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Falei sem pausas, sem brechas, não consigo nem lembrar se deu tempo para respirar nas vírgulas inexistentes do meu texto oral ensaiado por três noites e três dias na frente do espelho do banheiro. “Onde acha que isso vai te levar? E a criança? A criança que você na maioria dos teus dias nem se lembra da existência, a criança que já tem um coração a bater dentro de ti. O que será dessa criança? O que será desse coração? O mesmo que fez com o meu? Que poderia ter morrido sozinho sem tua ajuda há três dias? Sai logo dessa vida, ou sai logo daqui!”. Esperava ansiosamente alguma alteração, algum grito ou xingamento como resposta, porém não deu tempo, desmaiou antes de falar o que quer que fosse, nem ao menos uma mensagem subliminar corporal foi dada.
Naquele milésimo de segundo ao vê-la cair no chão da sala pensei que fosse desmaiar no milésimo seguinte. Porém meu senso prático falou mais alto que a minha boba emoção desencadeada pela neurose de uma desconhecida que levei para minha casa sem saber ao menos nenhum dos seus antecedentes. Queda de pressão havia sido a culpada, contraditória à minha pressão alta, chegava a ser cômico, dois extremos juntos no mesmo metro quadrado.
Dependente como um alcoólatra, estava prestes a morrer por excesso de Maria das Lurdes. Tentava criar uma aversão à sua figura, quanto mais insistentes fossem minhas frustradas tentativas, mais próxima dela ficava. Pensei em criar um grupo de ajuda, como os alcoólicos anônimos, grupo de apoio aos obcecados por desconhecidos (nome adepto a mudanças, não soa bem, lembrar de pensar em algo). Lá, pessoas como eu, iriam encontrar ajuda, se identificar com os casos alheios e passar o seu tempo com outro passa tempo.
20 de junho, a famosa Mercedes voltou tomá-la de mim cada vez mais comumente. Sua cor, suas rodas, seu retrovisor e sua placa haviam mudado, porém a certeza de que era o mesmo carro para mim era absoluta. Apesar da sua presença física cada vez mais escassa, nunca mais havia sentido sua real companhia, apenas sua falta, o relógio cronometrava os dias que faltavam para o seu físico acompanhar a sua alma. Quando o sol vinha me avisar do outro dia pensava nas palavras certas para lhe dizer, dizer para não ir, para não levar em consideração as minhas críticas, arrogâncias, que tudo aquilo era causado pelo carinho materno que surgiu desprevenido por ela e pelo bebê. Cada noite me gritava na janela minha covardia, e naquela noite filmaria Lurdes entrar naquela Mercedes com o seu Glamour decadente habitual, seu cigarro já no fim sendo pisado pelos seus finos saltos. Deixei de ser fumante passiva naquele dia 30 de junho.
Havia me deixado um par de brincos e um doce bilhete: “Para você os brincos de pérola, herança da minha mãe, e a melhor parte de mim, parte que você fez ressurgir por algum tempo. Estou de viagem, nada de lágrimas, não mereço a vida de ninguém, nem sequer a minha, viajo e não volto nunca mais para esta terra, partirei de vez hoje de madrugada, partirei sem esperança de volta. Obrigada e me perdoe.”
Seu destino é a minha imaginação. Seu destino são meus dedos enrugados a digitar atentamente tudo que queria que acontecesse. O dono da Mercedes era o seu resquício de amor que veio lhe salvar? Ou seria ele um traficante de armas invisível? Estaria ela agora brincando com seu lindo menino num parque estadual qualquer? Ou estaria a sete palmos do chão? Está apenas cravada na minha carcaça e na minha alma, apenas isso posso lhes confirmar.

28 outubro, 2009

Em pressão... (Parte 2)

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Minha solidão mascarada pela obsessão de observar personagens pitorescos à minha volta, finalmente me deu adeus nas conversas intermináveis de um tempo que lembro tão detalhadamente. Confessara-me a sua vontade suicida, o desejo incessante de chegar ao fim do seu precipício, a indecisão de ter que acabar com uma vida que nem começou para isto, covardia. Enquanto o dia não chegava, era apática, nenhuma explosão de emoções transpirava pela sua pele repleta de cicatrizes. O sol trazia com ele sua forte depressão, seus traumas e sua mania de permanecer no escuro, de preferência sem o som de passos ao seu redor.
Apenas a presença humana me tranquilizava de tal maneira que não consigo expressar, seria como um vento frio doce batendo no meu rosto enrugado. Maria das Lurdes seria um furacão, multipolar, que aterrissou na minha vida. Não tive filhas, muito menos netas, tinha sobre ela uma noção de proteção cuidadosa, aconselhava ter o seu filho nem que fosse para dar para adoção. Acalmava-a nos momentos difíceis dizendo que poderia ficar comigo o tempo que fosse preciso, sempre recebia em troca palavras doces de agradecimento juntamente com “você não sabe o bem que está fazendo para minha vida”, gostaria de ter dito em algum momento, “recíproco”.
Dia 23 de maio. Após minhas incansáveis insistências, quase súplicas, consegui levar Maria das Lurdes ao médico, apesar das péssimas condições do hospital público, das filas homéricas e da espera exaustiva, conseguimos ser atendidas. Quatro meses de gestação, feto mal desenvolvido, acúmulo de fatores negativos, vícios, cigarro, álcool, má alimentação, tentativas autodestrutivas. Nada parecia lhe abalar, nem incomodar, sorriso sarcástico notavelmente destinado ao médico com ar de quem sabe onde ele anda nas madrugadas frias que alega estar de plantão. Formação dos primeiros cabelos do feto, que deixou de ser feto, para se tornar um feto macho, poderia agora se chamar Mauricio, Otavio ou Fabiano.
Passei meus dias a imaginar o rosto do dono daquele espermatozoide. Um gordo homossexual tentando criar para a sua família o protótipo desejado, porém bastante inteligente e com bons genes para cabelo escuro e liso. Tentativas. Um estrangeiro repugnante que havia vindo fazer turismo sexual praiano, prestes a ter uma insolação pela quantidade de raios ultravioletas recebidos na sua pele quase albina, ainda mais sem protetor solar algum. Ou seria o dono daquela Mercedes quatro portas, última geração que devo até ter mencionado. Inúteis.
Preocupações tomavam conta do meu ser por completo. O estrondo na porta, o barulho causado pela batida severa vinha como relâmpago me avisar da sua ausência por no máximo dois dias. Ao voltar trazia dinheiro para ajudar nas despesas da casa, algumas cicatrizes novas e esporadicamente demonstrava estar enojada por alguma leve atitude.
Dia 17 de junho, minha velha amiga pressão alta veio me visitar junto com uma dor aguda e forte mal estar, meu falso antídoto foi deglutido de uma vez só com um pouco de água. O meu grito à sua procura fez eco, a resposta era minha própria voz seca em busca da sua voz doce. Sentia algo que nunca havia sentido antes, uma angústia, um desespero, uma preocupação palpitante por três dias curada pela sua chegada intensamente fora de si. Gritei, berrei, questionei coisas que sabia que ela mesma não conseguiria responder. Não conseguia viver nesse gráfico ofuscante de baixos e altos tão pontiagudos, precisava de um pouco de constante, até de uma parábola, poderia ser.

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27 outubro, 2009

Em pressão... (Parte 1)

Sinto eu uma necessidade de despejar tudo num papel, vomitar a tragédia grega a qual fui espectadora, despejar o que chamo de morte vivida. Pode lhes parecer ser apenas a fértil imaginação dramática de uma senhorinha aparentemente tão amável que passou a sua vida como público da morte alheia, porém tenham a minha garantia que aqui só registrarei as observações fervescentes dos meus olhos cansados, o que o vento me sussurrou ainda há pouco e as minhas lembranças um pouco defasadas pelo aviso próximo de não estar mais entre esses tijolos e argamassas. Começarei logo com a minha preferida, alguém um dia a chamou de galega e eu gostei. Apresento-lhes, a “galega”.
Seus longos cabelos loiros tentavam esconder o lindo rosto de traços suaves e delicados, modificado artificialmente por desejo e vontade própria. Olhos perdidos, no meio da cidade que fingia dormir, fixos nos carros que davam adeus naquela esquina. Sua única e fiel companheira, uma caixa de marlboro cheia de bitucas de cigarro, pequenas doses de ilusões espalhadas pela fumaça que saía dentre seus lábios vermelhos.
Saltos finos, escolhidos especialmente para cada noite, porém desgastados por movimentos incessantes e contínuos. Movimentos que só se faziam saciados ao entrar numa Mercedes cor de fogo. Ao passar dos meses notava que isto havia virado uma constante rotineira e semanal, pontualmente no mesmo dia e horário.
Uma barriga saliente me prendia a atenção. Criei uma hipótese plausivelmente aceitável, seria apenas displicência em relação a sua alimentação, teria comido mais do que deveria e voltaria logo ao seu corpo curvilíneo que tanto despertava segundas intenções, normalmente masculinas. Hábitos novos surgiram, vômitos e fraquezas. Sua barriga adquiriu um formato diferenciado, apesar de não ter muita experiência nestes assuntos, juntei as peças do óbvio quebra-cabeça, não era apenas gordura localizada, mas estaria esperando um filho. Ela seria capaz de fazer uma boa atuação no papel de mãe? Ou trataria o ser inocente que carregava dentro de si nos mesmos moldes que tratava a própria vida?
Suas vestes vulgares e decotadas a mostrar tanta pele, diminuíam a olhos vistos. A cada noite que passava sua presença naquela esquina se fixava por um período maior de tempo.
Em 19 de abril escutei minha sentença de morte numa sala de hospital. Uma voz gasguita me informara minha data máxima de validade, após alguns meses seria um produto de supermercado estragado, sem serventia prática, sem importância, descartado, abominável, vencido. Reflexões clichês na volta de casa, sobre a hora da morte, me faziam pensar na vida e no que ela poderia ter sido. Na barreira inexistente que separava a madrugada do dia seguinte, Maria das Lurdes, estava lá no mesmo local de sempre, com malas nas mãos, sacolas, tudo que fosse capaz de guardar os seus poucos pertences. Seria naquela hora que iria trocar as primeiras palavras com alguém que já conhecia tão bem. Rosto desesperado e sem a possibilidade de recusar o meu convite, aceitou deveras agradecida e surpresa, passar então a noite mais longa na minha casa, a noite de três meses e tantas horas.

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21 outubro, 2009

Até o derramar do próximo copo


Tudo demais para mim é pouco. Não me lembro de não ser assim, exagerada, extravagante, extrovertida. Derramo vícios goela ha baixo ao som de conselhos corriqueiros habituais. Poderia me impressionar com a insistência alheia de interferir na minha vida, mas já se tornou clichê. Me tornei clichê sem perceber, escrever sobre o amor é clichê, amar é clichê. Sou tão novidade da semana passada, notícia antiga jogada fora no jornal que quebrou por dividas acumuladas. Não que procure chamar atenção, isso parece acontecer naturalmente, sem esforços, junto com a minha linguagem tão rebuscada. Sou mulher de muitos amores, muitos pequenos textos dedicados a leitores inexistentes. Não sou ainda nem sequer uma mulher, dependendo da sua análise. Estou acostumada a ser julgada por não ser homem, se fosse, teria o direito de ter um livro completo só de nomes femininos que passaram pelo meu sofá, minha rede, minha cama ou o elevador de serviço do meu prédio, ainda receberia congratulações dos meus amigos por ser assim tão másculo. Pareço uma revoltada sem causa, queria ter causas concretas, ter nascido na época de um ditador ou ser uma minoria lutando para igualdade de direitos. Não sei onde fui me meter atrás de tantos personagens, me perdi no meio de tantas vidas imaginárias, tantas histórias inventadas, tantos eu – líricos reprimidos. Sou uma metralhadora de informações, falo sem parar, mudo de assunto rapidamente, acho que não consigo me acompanhar mais como antes. Não tento que isto tudo tenha algum sentido, apenas que se aproxime da realidade, da minha realidade. Talvez tenha te amado tanto que tentei me proteger, me proteger de amar de novo e de sofrer conseqüentemente, e meu Word não se adapta a nova ortografia, nem ao fato do trema ter saído de cartaz. Preciso parar com essa mania de me jogar assim num papel, sem continuidade, sem nexo, sem resto. Derramou.

06 outubro, 2009

Um pedaço da França.






Os filmes norte-americanos ou com fortes influências de Hollywood estão em cartazes em qualquer cinema perto da sua casa e da banca de jornal do outro lado do mundo, mas quantos de nós já paramos para prestar atenção no cinema francês? Silencioso e marcante vem ganhando adeptos no Brasil pelos seus olhares diferenciados de situações inusitadas ou corriqueiras.
No ano da França no Brasil, em plena divulgação de vários aspectos da sua cultura, o público e o acesso ao cinema Francês é restrito. A maioria dos filmes entra em cartaz apenas nas maiores capitais do país, deixando as cidades pequenas à margem do fácil conhecimento dessa arte, já nas locadoras é possível encontrar um número maior de opções, apesar de ainda escassas e raras.
Para os interessados a conhecer e desvenda o cinema francês, aqui estão dicas de filmes:

- Atrizes (França, 2007).
De Valeria Bruni Tedeschi. Com Louis Garrel, Valeria Bruni Tedeschi. PB. Duração 107’.
Marcelline é uma atriz que, de repente, passa a ser atormentada pela sombra de sua personagem, o que a faz ensaiar com tremenda dificuldade. Apesar do incentivo do diretor, que diz que fará dela uma estrela, Marcelline não consegue esquecer que já é uma quarentona, solteira e sem filhos. Ao ser apresentada para Nathalie, a assistente do diretor, as duas descobrem que já se conheciam desde os tempos de teatro na escola, há mais de 20 anos, e aos poucos vão notando o quanto são parecidas.

- O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Fabuleux destin d'Amélie Poulain, Le,
2001)
Com direção de Jean-Pierre Jeunet. Tendo como protagonista a famosa atriz francesa Audrey Tautou.
Amélie é uma jovem que se muda do subúrbio, onde morava com a família, para Paris, para trabalhar como garçonete. Ela encontra uma caixinha cheia de itens pessoais escondida no banheiro de sua casa e decide entregá-la ao antigo dono, revendo pequenos conceitos que mudarão sua vida.

- Bem-me-quer... Mal-me-quer (À la folie... pas du tout, 2002)
Em Bordeaux, Angélique (Audrey Tautou), uma estudante de Belas Artes, parece ter tudo na vida: juventude, beleza e uma promissora carreira como artista plástica. Mas ela só tem olhos para o amor. É que ela desenvolveu uma paixão desmedida pelo Dr. Loïc (Samuel Le Bihan), um médico cardiologista de renome, de 35 anos, casado e prestes a ser pai.
A despeito de tudo o que seus amigos lhe dizem e de diversos acontecimentos que provam o contrário, Angélique persiste na idéia de que Loïc também a ama, transformando o que de início parecia ser um desencontro amoroso em uma perigosa obsessão, pois cada vez mais ela tem como certo que um dias eles irão se casar.

Pronominais

"Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro"


Oswald de Andrade.