28 outubro, 2009

Em pressão... (Parte 2)

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Minha solidão mascarada pela obsessão de observar personagens pitorescos à minha volta, finalmente me deu adeus nas conversas intermináveis de um tempo que lembro tão detalhadamente. Confessara-me a sua vontade suicida, o desejo incessante de chegar ao fim do seu precipício, a indecisão de ter que acabar com uma vida que nem começou para isto, covardia. Enquanto o dia não chegava, era apática, nenhuma explosão de emoções transpirava pela sua pele repleta de cicatrizes. O sol trazia com ele sua forte depressão, seus traumas e sua mania de permanecer no escuro, de preferência sem o som de passos ao seu redor.
Apenas a presença humana me tranquilizava de tal maneira que não consigo expressar, seria como um vento frio doce batendo no meu rosto enrugado. Maria das Lurdes seria um furacão, multipolar, que aterrissou na minha vida. Não tive filhas, muito menos netas, tinha sobre ela uma noção de proteção cuidadosa, aconselhava ter o seu filho nem que fosse para dar para adoção. Acalmava-a nos momentos difíceis dizendo que poderia ficar comigo o tempo que fosse preciso, sempre recebia em troca palavras doces de agradecimento juntamente com “você não sabe o bem que está fazendo para minha vida”, gostaria de ter dito em algum momento, “recíproco”.
Dia 23 de maio. Após minhas incansáveis insistências, quase súplicas, consegui levar Maria das Lurdes ao médico, apesar das péssimas condições do hospital público, das filas homéricas e da espera exaustiva, conseguimos ser atendidas. Quatro meses de gestação, feto mal desenvolvido, acúmulo de fatores negativos, vícios, cigarro, álcool, má alimentação, tentativas autodestrutivas. Nada parecia lhe abalar, nem incomodar, sorriso sarcástico notavelmente destinado ao médico com ar de quem sabe onde ele anda nas madrugadas frias que alega estar de plantão. Formação dos primeiros cabelos do feto, que deixou de ser feto, para se tornar um feto macho, poderia agora se chamar Mauricio, Otavio ou Fabiano.
Passei meus dias a imaginar o rosto do dono daquele espermatozoide. Um gordo homossexual tentando criar para a sua família o protótipo desejado, porém bastante inteligente e com bons genes para cabelo escuro e liso. Tentativas. Um estrangeiro repugnante que havia vindo fazer turismo sexual praiano, prestes a ter uma insolação pela quantidade de raios ultravioletas recebidos na sua pele quase albina, ainda mais sem protetor solar algum. Ou seria o dono daquela Mercedes quatro portas, última geração que devo até ter mencionado. Inúteis.
Preocupações tomavam conta do meu ser por completo. O estrondo na porta, o barulho causado pela batida severa vinha como relâmpago me avisar da sua ausência por no máximo dois dias. Ao voltar trazia dinheiro para ajudar nas despesas da casa, algumas cicatrizes novas e esporadicamente demonstrava estar enojada por alguma leve atitude.
Dia 17 de junho, minha velha amiga pressão alta veio me visitar junto com uma dor aguda e forte mal estar, meu falso antídoto foi deglutido de uma vez só com um pouco de água. O meu grito à sua procura fez eco, a resposta era minha própria voz seca em busca da sua voz doce. Sentia algo que nunca havia sentido antes, uma angústia, um desespero, uma preocupação palpitante por três dias curada pela sua chegada intensamente fora de si. Gritei, berrei, questionei coisas que sabia que ela mesma não conseguiria responder. Não conseguia viver nesse gráfico ofuscante de baixos e altos tão pontiagudos, precisava de um pouco de constante, até de uma parábola, poderia ser.

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